Abre os olhos num sábado de manhã
qualquer. Ele tem total noção do dia, mas não da hora. A resolução, assim, é esticar o
braço preguiçoso até o criado-mudo onde está o celular que marca 10 horas e 42
minutos. Sabe que é tarde, mas decidiu permanecer prostrado na cama, na breve
paz dos recém-acordados. Sabe, também, que, diferente de todas as outras manhãs
em que acorda mais cedo que sua namorada e deixa preparado para ela o
café-da-manhã, já que ela entra no trabalho mais tarde e não precisa viajar
para exercer suas funções profissionais, ela acordou há umas duas horas e agora
deve estar no supermercado comprando os ingredientes para o almoço. Ela diz que
isso serve como equilíbrio na relação: aos finais de semana é a sua vez de levantar um tanto mais cedo.
Vira-se na cama e deita com o nariz
diretamente no travesseiro da namorada e parceira de casa. Gosta da essência
que sente penetrar em suas vias aéreas, e a paz se prolonga por mais alguns
instantes. Ainda incipiente está o inerente a ele, que não sabe explicar.
“Você é um cara de sorte”, ressalta um dos seus
amigos de bar. Já ouviu isso diversas vezes. “Está fazendo o que gosta,
ganha um bom salário, tem uma namorada simpática. Não pode reclamar, cara.” Não
gosta do termo sorte que, para ele, descredita todo um período de extremo
esforço. A atitude do outro é defini-lo como sortudo; dessa forma consegue,
além de indiretamente mostrar seu inconformismo com a sua situação, diminuir as
conquistas do seu amigo. Conquistas.
É uma palavra bizarra, mas não tem como fugir dela. Não pode se incomodar com
absolutamente tudo. É reconfortante ter a ciência que se virou bem em sua
história pessoal. A história que cada um tem e gostaria de contar (e gostaria
de usar como justificativa, sempre como justificativa para as suas ações
equivocadas; disfarçar-se de inocente perante todas as ações; há sempre alguma
explicação plausível até para os atos mais desprezíveis.)
Ouve a porta da sala do apartamento se
abrindo, o som de sacolas plásticas sendo colocadas com certo cuidado em cima
da mesa central. Ele já está totalmente desperto, mas persiste em continuar
deitado. A namorada entre com extremo cuidado no quarto, no entanto logo
percebe que ele está acordado. Dá um beijo em sua testa e afirma que é tarde, e
pergunta-afirmando que ele não tomará o café-da-manhã, que é melhor esperar
pelo almoço. Ele confirma com um gesto obediente de cabeça.
Deitado ele pensa: almoçar, terminar
finalmente de escrever um artigo, assistir um filme com ela (hoje a escolha é
dela), jogar basquete com os amigos, sair para jantar, transar e dormir. Não
sabe por que tem a necessidade de planejar até quando a transa irá acontecer,
mas sempre o faz.
“Hoje vou jantar com os meus pais”, ela
grita lá da cozinha. Não sabe o que dizer. Interpreta aquilo como um convite
para não ir e diz que tudo bem, que ele pede alguma pizza ou algo do tipo. Ela
não diz nada.
A paz se esvai. Tem total consciência
que não vai escrever o artigo, que talvez vá jogar basquete como uma forma de
escape a frustração anterior, que ela provavelmente vai voltar puta por conta
de algo que o pai falou e não vão transar. Precisa de escape para tudo. Feliz
enquanto dá aulas, mas a preferência é por tê-la ao lado. Feliz por tê-la ao
lado, mas não vê a hora de ouvir as interpretações dos alunos àquele conto
requisitado para leitura. Não se conforma com a impossibilidade de total satisfação.
O relógio do celular marca 10 horas e 48
minutos. Sente fome. Droga, deveria ter respondido que iria pelo menos comer
alguma coisinha antes do almoço. Porque essa angústia por pequenices?
Vai ser sempre assim? Sempre foi assim.
De repente ela entra no quarto
carregando um pãozinho com manteiga: “É para enganar o seu estômago até o
almoço”. Ele a abraça da forma mais carinhosa e, talvez, piegas possível. “Nada
disso. Coma e depois trate de terminar aquele artigo.” A paz é restaurada por
mais alguns instantes. Espera que seja sempre assim. Gosta de se enganar,
planejar tantos as tristeza quanto as alegrias.