domingo, 1 de março de 2015

Ao inerente.

Abre os olhos num sábado de manhã qualquer. Ele tem total noção do dia, mas não da hora. A resolução, assim, é esticar o braço preguiçoso até o criado-mudo onde está o celular que marca 10 horas e 42 minutos. Sabe que é tarde, mas decidiu permanecer prostrado na cama, na breve paz dos recém-acordados. Sabe, também, que, diferente de todas as outras manhãs em que acorda mais cedo que sua namorada e deixa preparado para ela o café-da-manhã, já que ela entra no trabalho mais tarde e não precisa viajar para exercer suas funções profissionais, ela acordou há umas duas horas e agora deve estar no supermercado comprando os ingredientes para o almoço. Ela diz que isso serve como equilíbrio na relação: aos finais de semana é a sua vez de levantar um tanto mais cedo.
Vira-se na cama e deita com o nariz diretamente no travesseiro da namorada e parceira de casa. Gosta da essência que sente penetrar em suas vias aéreas, e a paz se prolonga por mais alguns instantes. Ainda incipiente está o inerente a ele, que não sabe explicar.
“Você é um cara de sorte”, ressalta um dos seus amigos de bar. Já ouviu isso diversas vezes. “Está fazendo o que gosta, ganha um bom salário, tem uma namorada simpática. Não pode reclamar, cara.” Não gosta do termo sorte que, para ele, descredita todo um período de extremo esforço. A atitude do outro é defini-lo como sortudo; dessa forma consegue, além de indiretamente mostrar seu inconformismo com a sua situação, diminuir as conquistas do seu amigo. Conquistas. É uma palavra bizarra, mas não tem como fugir dela. Não pode se incomodar com absolutamente tudo. É reconfortante ter a ciência que se virou bem em sua história pessoal. A história que cada um tem e gostaria de contar (e gostaria de usar como justificativa, sempre como justificativa para as suas ações equivocadas; disfarçar-se de inocente perante todas as ações; há sempre alguma explicação plausível até para os atos mais desprezíveis.)
Ouve a porta da sala do apartamento se abrindo, o som de sacolas plásticas sendo colocadas com certo cuidado em cima da mesa central. Ele já está totalmente desperto, mas persiste em continuar deitado. A namorada entre com extremo cuidado no quarto, no entanto logo percebe que ele está acordado. Dá um beijo em sua testa e afirma que é tarde, e pergunta-afirmando que ele não tomará o café-da-manhã, que é melhor esperar pelo almoço. Ele confirma com um gesto obediente de cabeça.
Deitado ele pensa: almoçar, terminar finalmente de escrever um artigo, assistir um filme com ela (hoje a escolha é dela), jogar basquete com os amigos, sair para jantar, transar e dormir. Não sabe por que tem a necessidade de planejar até quando a transa irá acontecer, mas sempre o faz.
“Hoje vou jantar com os meus pais”, ela grita lá da cozinha. Não sabe o que dizer. Interpreta aquilo como um convite para não ir e diz que tudo bem, que ele pede alguma pizza ou algo do tipo. Ela não diz nada.
A paz se esvai. Tem total consciência que não vai escrever o artigo, que talvez vá jogar basquete como uma forma de escape a frustração anterior, que ela provavelmente vai voltar puta por conta de algo que o pai falou e não vão transar. Precisa de escape para tudo. Feliz enquanto dá aulas, mas a preferência é por tê-la ao lado. Feliz por tê-la ao lado, mas não vê a hora de ouvir as interpretações dos alunos àquele conto requisitado para leitura. Não se conforma com a impossibilidade de total satisfação.
O relógio do celular marca 10 horas e 48 minutos. Sente fome. Droga, deveria ter respondido que iria pelo menos comer alguma coisinha antes do almoço. Porque essa angústia por pequenices?
Vai ser sempre assim? Sempre foi assim.
De repente ela entra no quarto carregando um pãozinho com manteiga: “É para enganar o seu estômago até o almoço”. Ele a abraça da forma mais carinhosa e, talvez, piegas possível. “Nada disso. Coma e depois trate de terminar aquele artigo.” A paz é restaurada por mais alguns instantes. Espera que seja sempre assim. Gosta de se enganar, planejar tantos as tristeza quanto as alegrias.