domingo, 27 de maio de 2012

À Celebração


Pensando mais friamente, depois do ocorrido, reflito que talvez nunca tenha me apaixonado realmente. A razão sempre residiu em mim, obstruindo toques de loucura que poderiam ser benéficos. De todo modo, eu entendo aquele que é insano e age dessa maneira, encontrando justificativas plausíveis para tanto. Elas têm que fazer sentido dentro do próprio ser, e isso não é negado. Entretanto, quando a ação se exterioriza, as conseqüências podem se tornar fatais, num processo de destruição não apenas de si mesmo, mas também do objeto venerado.
Eu concordei em ser o cúmplice de tão belo ato romântico. Era uma quarta-feira, ou quinta, não me lembro muito bem. O amanhecer veio com tanta força que até o próprio sol chorou, deixando-nos na semiescuridão de uma tarde chuvosa.
Permaneci sentado do outro lado da rua, num ponto de ônibus, de frente ao lugar onde a celebração de sentimento tão nobre iria ser posta em prática. Minha visão estava um tanto quanto turva por conta da nebulosidade, mas ainda sim eu conseguia sentir, ao longe, quase não vendo, aquela declaração.
Meu amigo parecia nervoso, talvez estivesse hesitando, tremia um pouco, ou eu queria que ele parecesse daquela maneira, não sei ao certo. Não havia quase ninguém nos arredores, apenas carros passando numa velocidade em que nada os chamaria a atenção.
Ele finalmente adentrou o lugar, não havia filas, eram três atendentes para um consumidor, ele. No entanto, meu amigo reservava sua visão para apenas uma delas, a sua grande paixão, a sua musa, que conversava animadamente com suas colegas, no ócio do trabalho. Quando ela o viu, percebeu-se certo horror em sua fisionomia, que foi se diluindo até se chegar a uma sensação de serenidade, ainda não completa, porém.
Pareceu-me que ela foi ao encontro dele, sendo que este remexia seu bolso, carregando ali o presente do amor incondicional. Conforme a loja estava fazia, ambos – importante frisar – beijaram-se, encontrando-se os corpos, sem um abraço completo, pois a mão dele permanecia estancada naquele buraco de suas vestes. Eu pouco podia ver ou, por mais estranho que pareça, sentir, também, uma das mãos da futura desposada. Notei, apenas, uma dor descomunal no abdômen dele, que poucos milésimos de segundos antes havia deferido seu carinho. Os dois, separando os lábios vagarosamente, foram-se ao chão, com os corpos ainda juntos caíram na amalgamação de suas respectivas poças escarlates. Ali, o único fato que sei perfeitamente, é que se casaram na morte.
Os objetos que levaram aquela união, assim como os cadáveres, jaziam inanimados no chão, sem saberem o que tinham conquistado. A eternidade, foi isso que aquelas duas facas, parecidíssimas, haviam ajudado a celebrar.
Apaixonar-me deliberadamente? Sim, flerto com a morte.